Wanderley Guilherme dos Santos: "A esquerda perdeu a capacidade de liderar"
Fonte: Valor
Mais original teórico da paralisia decisória que levou ao
golpe de 1964, Wanderley Guilherme dos Santos não tem dúvidas de que o país
vive uma grave crise política pela corrosão do que chama de 'poder causal' das
instituições. Credita esta erosão à perda da capacidade da esquerda de
capitanear o centro e diz que a crise só será superada pelas lideranças
políticas: "É a hora da virtude".
Na semana passada, ao receber o Valor em seu apartamento em
Ipanema, repleto de telas do mais velho de seus três filhos, Juliano, Wanderley
Guilherme rompeu um silêncio a que se impôs desde o início do 'petrolão'. Um
dos intelectuais que mais se expuseram na defesa da tese do mensalão como caixa
2, desta vez Wanderley Guilherme não tem dúvidas. Com a serenidade de quem se
aproxima dos 80 anos, é taxativo: "O banquete de escândalos servidos
diariamente à direita não justifica a solidariedade em relação a bandidos".
O autor do premonitório "Quem dará o golpe no
Brasil?" (1962) diz que mudanças podem acontecer se o PT se cansar de
sangrar e exigir mudanças na política econômica e no governo.
A seguir, a entrevista:
A esquerda tem criticado o caráter elitista
das manifestações. Esta crítica não ignora a capacidade de a classe média que
sai às ruas galvanizar uma insatisfação que a extrapola?
Wanderley Guilherme dos Santos: As manifestações do dia 15
são resultado de circunstâncias contemporâneas e desaguadoro de condicionantes
que vêm se acumulando. Divirjo profundamente da opinião majoritária da
esquerda. Está equivocada no diagnóstico, na interpretação do passado recente e
nas suas propostas. A começar pelo fato anedótico de reclamar da direita por
estar ela se comportando como direita sem procurar entender o que a levou a uma
mobilização como em décadas não havia. Supondo que tenham sido apenas
manifestações de direita - e não o foram - o que me importa é que a direita
está liderando o centro.
Isso não acontece desde
quando?
Wanderley Guilherme dos Santos: Com sucesso, isso não
acontece desde 1964. Depois da ditadura a direita ficou isolada do centro e,
por isso, não conseguia colocar ninguém na rua. O movimento 'Cansei', por
exemplo, foi patético. Agora não. É preciso reconhecer que as convocatórias da
direita têm tido muito mais sucesso do que as da esquerda.
Por que a esquerda
perdeu essa capacidade mobilizar?
Wanderley Guilherme dos Santos: A partir da eleição de Lula a
esquerda vem cometendo dois sérios erros, de diagnóstico e perspectiva. Um
deles foi a bandeira da reforma política, o outro é a visão sobre o PMDB. Assim
que foi aprovada a Constituição de 1988, os conservadores começaram a
combatê-la com a bandeira do parlamentarismo e voto distrital. Por trás do
trabalho de desmoralização, havia não apenas a concepção de regresso dos conservadores,
como também o preconceito contra a política e a má qualidade da representação.
Veio daí o discurso da reforma como se os códigos eleitorais filtrassem
caráter. Esse sentimento antipolítico que desde sempre é da classe média
conservadora foi absorvido pelo PT no seu nascedouro.
E no que a adesão do PT
à bandeira da reforma política levou esse povo todo para a rua?
Wanderley Guilherme dos Santos: Essa concepção de que há
alguma coisa errada na política que tem que ser resolvida por uma reforma foi
alardeada pelo PT sobretudo depois da ação penal 470. Como escapismo. Incorreu
no erro ao cubo de defender uma assembleia constituinte exclusiva. De onde é
que eles imaginam que viriam os eleitores e os candidatos dessa constituinte?
Vão buscar eleitores na Suécia e constituintes na Islândia? Essa bandeira
acabou entrando na cultura política do país. De tal modo que tanto nas
passeatas do dia 13 quanto naquelas do dia 15 todos se diziam favoráveis a uma
reforma política sem fazer ideia do que significa. Isso intoxicou a opinião do
público educado com a ideia falaciosa e ilusionista de que os problemas
existentes no país são consequência automática das instituições políticas. Isso
é falso e fraudulento. Leva as pessoas a não terem mais respeito nem se
sentirem mais responsáveis pelas estruturas existentes.
O PT foi engolido pelo
seu próprio discurso?
Wanderley Guilherme dos Santos: Sim, foi engolido pelo
discurso conservador, dada sua origem comprometida com a ideologia da classe
média ascendente. Não quero ser reducionista, mas o fato de ter surgido dentro
de uma ditadura, quando a política era um mal, contribuiu para o PT ter uma
concepção absolutamente virgem, angelical e juvenil de quem nunca fez política
na vida.
É nesse sentido que o
PT e o PSDB viraram as duas metades de uma mesma laranja?
Wanderley Guilherme dos Santos: Talvez. O PSDB, como a UDN,
faz política porque não tem outro jeito. O que não quer dizer que as lideranças
sejam autoritárias, mas a base de sustentação eleitoral do conservadorismo topa
o autoritarismo numa boa. Pode enjoar, sobretudo se sofrer, mas topa. Isto
contribuiu para um ruptura da respeitabilidade entre a opinião pública de todos
os matizes e as instituições. O PT colaborou insistentemente para isso.
Chegamos ao ponto em que, depois de todo esse desgaste, o poder causal das
instituições está erodindo. O grau de indeterminação está muito elevado. Não se
sabe mais se as instituições vão produzir o que se espera delas.
E o sr. acredita que
foi a expectativa gerada em torno da reforma política que gerou isso?
Wanderley Guilherme dos Santos: São expectativas que fazem
com que qualquer coisa que aconteça seja insuficiente. Não se sabe como o
Congresso vai se comportar daqui para frente. O poder causal da medida
provisória, por exemplo, não está funcionando. Não acredito que quem organiza
essa esterilização do Executivo a partir do Legislativo tem condições de fazer
com que a instituição funcione com poder causal.
Mas no Judiciário esse
poder causal não está funcionando?
Wanderley Guilherme dos Santos: No Judiciário também não se
sabe muito bem o que vai acontecer. Não dá para julgar o comportamento que os
ministros terão a partir de como se comportaram no passado. Eles mudam de
opinião. As instituições são preditivas. Mas nem isso está acontecendo.
Por que todos os
partidos aderem de maneira tão inequívoca ao discurso da reforma política?
Wanderley Guilherme dos Santos: Por que assim eles se safam.
'O problema não sou eu é a lei eleitoral' é um discurso ótimo para a elite
política. É inominável do ponto de vista do amadurecimento político de um povo
que uma liderança faça essa propaganda sistemática. Eles, no fundo, sabem que
não é isso. Não é por causa do sistema eleitoral que os deputados do PT até
agora indiciados receberam propina de empreiteiras benevolentes que os queriam
premiar com facilidades para a campanha. As empreiteiras não roubaram para
fazer benesses. Corromperam a classe política para roubar. O que é muito diferente.
O sr. disse que o PT
também se equivocou em relação ao PMDB, mas o partido não tem sido um entrave?
Wanderley Guilherme dos Santos: O PMDB foi, mais uma vez, na
esteira desse preconceito antipolítico, apontado como o mal do parlamento, por
fisiológico e clientelista. Essa antipatia foi absorvida pelo PT ao ponto de
convidar o PMDB na vice e montar uma estratégia para sua liquidação. O
Executivo está recebendo o que plantou tanto na reforma política, que está
sendo liderada pelo PMDB, quanto no
resto. Que seja bonito ou feio este centro é o que temos. E o que você tem que
fazer é liderar o PMDB e domesticá-lo para que o partido se comporte de acordo
com sua pauta de valores e não aliená-lo e colocá-lo no campo oposto. O PT não
aguenta o rojão nem é tão puro assim. Como também não o são seus aliados PP e
PR. Aliás, o governo continua cheio de bandidos como todo mundo sabe.
Essa fixação no PMDB
oculta a falência do PT em lidar com a corrupção?
Wanderley Guilherme dos Santos: Do PT e da sociedade. Os
problemas burocráticos que há no país se resolvem com despachantes. O
despachante é o Fernando Baiano da classe média. É ele quem é o intermediário
dos ilícitos e dos bodes colocados pela burocracia. A população não vê isso
como corrupção. A passeata de 15 de março era de profissionais liberais,
médicos, advogados, dentistas, desenhistas, eletricistas. Todos sonegadores.
Não difere da corrupção da empreiteira. É parte de uma cultura política
atrasada, da qual ninguém está livre.
Mas não há uma
diferença de escala?
Wanderley Guilherme dos Santos: Essas relações espúrias foram
ficando mais complexas. Na Primeira República o ilícito era interferir para
nomear o juiz de paz, a professora e o delegado. Depois veio o empreguismo e a
política da caixa d'água. Com o Plano de Metas de JK abriu-se possibilidade
para um tipo de ilícito de muito maior porte nas obras públicas. Não tenho a
menor dúvida de que muitas obras custaram mais do que deviam. As oportunidades
aumentaram consideravelmente. E isso continuou com as obras faraônicas da
ditadura e teve um impulso nos últimos 12 anos com desenvolvimento puxado por grandes
obras de todo tipo, hidrelétricas, pré-sal.
Dito assim, a corrupção
não parece inevitável?
Wanderley Guilherme dos Santos: Não estou dizendo que esse é
um problema do capitalismo, mas da escassez. Há tribos que roubam mulheres. Na
União Soviética as estudantes universitárias se prostituíam por um jeans. Onde
há um bem escasso há problemas de comportamento fora das normas vigentes. Não
estou dizendo que seja inevitável, tem que prevenir e punir.
Mas não é isso que o
Judiciário está demonstrando?
Wanderley Guilherme dos Santos: Sem o Ministério Público o
que aconteceu na Petrobras não teria como ser descoberto. O que eu reclamo dos
procuradores é que eles existem desde a Constituição de 1988 com plenos
poderes, mas foram negligentes antes de o PT chegar ao poder.
O procurador-geral que
não era escolhido entre os mais votados influenciou nisso?
Wanderley Guilherme dos Santos: Era o período do [Geraldo]
Brindeiro, que engavetava tudo, mas eles têm autonomia. Não foi o [Rodrigo]
Janot quem fez a Lava-Jato, foram os procuradores com um juiz. Janot só soube
depois. Deixaram o problema se avolumar. O procurador é o vigia desse negócio,
e não o sistema eleitoral.
Não foi uma sociedade
mais vigilante que produziu esse MP mais ativo?
Wanderley Guilherme dos Santos: Acho que temos sido, na
verdade, lenientes. Se você ficar um mês numa repartição você sabe onde tem
problema. Qualquer chefe de seção da Petrobras sabia da corrupção. É impossível
não saber, mas é preciso não transformar isso na epistemologia do crime. Saber
não implica cumplicidade. O problema não é saber ou não saber. O problema é o
fato. A cultura política brasileira é muito a favor da delação e despreza o
delator. Ninguém faz nada pela absoluta inconsequência da denúncia.
É aí que tem uma
insuficiência institucional, na proteção de quem delata?
Wanderley Guilherme dos Santos: Veja que isso não tem nada a
ver com o sistema eleitoral. As ouvidorias ainda são muito fajutas. Nos Estados
Unidos o governo chega até a pagar a quem denuncia certos crimes. Não
protegemos os bons funcionários dos ladrões. Todo o sistema produtivo, do privado
ao estatal, tem problemas. Agora não tenho dúvidas de que, quando começou o
problema da Petrobras o Executivo tinha que ter ampliado a investigação para
todo o governo.
Mas isso não
comprometeria o projeto de poder do PT?
Wanderley Guilherme dos Santos: Não sei, mas o partido não seria
o sócio disso que está acontecendo. Não tem obra pública no Brasil que não
esteja contaminada. Não sei quem são os Pedro Barusco e Paulo Roberto Costa de
outras instituições mas não tenho dúvida de que existem. Ficaria felicíssimo se
descobrissem. O banquete de escândalos servidos diariamente à direita não
justifica solidariedade ou hesitação da esquerda em relação a bandidos.
Sem mudar a cultura das
corporações uma reforma do financiamento de campanha, por exemplo, vira letra
morta?
Wanderley Guilherme dos Santos: As pessoas esquecem que toda
legislação positiva indica, subliminarmente, os meios de transgredi-la. A
questão está na prevenção e punição, que, por sua vez, também indicarão
subliminarmente os meios. Ou seja, independente do valor abstrato das leis, a
vigilância e repressão de ilícitos devem recair sobre seus operadores. Agora
tem um problema aí que é o marketing eleitoral. Não dá mais para aceitar uma
campanha sem teto de gastos.
Um teto implica também
em mudança de formato...
Wanderley Guilherme dos Santos: Não precisa fazer show. Esses
marqueteiros não sabem nada de politica. É um absurdo que integrem o conselho
político da Presidência. João Santana fez uma campanha cara e ruim que quase
derrotou Dilma. Coisa de mau gosto, mórbida, com aquelas pessoas no caminhão se
vendo no passado. Dilma ganhou por diferença muito pequena em grande parte pela
militância que se assustou com a chance de derrota e foi às ruas.
O sr. aponta uma falta
de liderança na esquerda para reverter esse rumo tomado pelo governo. Lula não
é mais uma liderança?
Wanderley Guilherme dos Santos: Não como era. Ele entrou
nesse desgaste geral. Em parte por culpa dele que fica falando o tempo todo que
a política não vale nada. O que não quer dizer que tudo esteja perdido, mas ele
perdeu muito. Isso tem que ficar claro. Suas convocatórias já não são atendidas
como antes. Permitiu que o centro passasse a ser liderado pela direita. A
esquerda está sem liderança. Não se pode deixar de reconhecer a surpresa que
foi o início de governo. Uma completa mudança do que foi dito até o último
comício. Foi um choque.
Foi esse choque que liquidou
a capacidade de a esquerda liderar?
Wanderley Guilherme dos Santos: Sem dúvida. Acho que a
presidente não tem mais liderança. Houve uma ruptura muito grande entre a base
social da esquerda e sua liderança. Ruptura essa que tenho dúvidas de que
consiga recuperar. Não adianta o que a presidente faça que a direita não vai
ficar quieta. Gostou do jogo, como se diz no futebol.
O jogo não é
derrubá-la?
Wanderley Guilherme dos Santos: Só se algo de extraordinário
acontecer. Sem o PMDB não se derruba ninguém. O partido é a fiança do
não-impeachment.
Com uma esquerda acéfala
seu ciclo caminha para o fim?
Wanderley Guilherme dos Santos: Não sei. Essas lideranças
atuais acredito que sim. O que não significa que não haja perspectiva à
esquerda. O PT pode cansar de sangrar e exigir mudanças na política econômica e
no governo. Pode apelar ao instinto de sobrevivência mas vai depender da luta
interna. Se o partido se consumir nela, que é irrelevante, não terá condições
de reagir.
O sr. classificou o
mensalão de julgamento de exceção, depois dele não haveria outro igual. O
petrolão não é um desdobramento?
Wanderley Guilherme dos Santos: O mensalão, de fato, caixa 2
com muito desvios. Na Petrobras o que houve foi roubo com formação de cartel,
aditivo e licitação manipulada. Para isso, eles têm que comprar político. O
caixa 2 não é compra de político. Lá houve condenações sem prova e teses absurdas
como a do domínio do fato ou a do [Carlos] Ayres Brito que o réu tem que provar
que não sabia. Agora não precisa mais violentar a lei.
O que pode vir de um
país em que o único poder com causalidade é o Judiciário?
Wanderley Guilherme dos Santos: Espero que o sistema se
recomponha a partir do Executivo, colocando criminoso para fora do governo.
Isso não compromete as instituições. Por outro lado, não vejo a oposição ir
além da batucada. O governo está executando o programa deles. O que é o PSDB
hoje? Um túnel no fim da luz.
Se o PSDB não tem
capacidade de canalizar insatisfações como a do dia 15 quem o fará?
Wanderley Guilherme dos Santos: É hora de aparecer um
oportunista.
Joaquim Barbosa?
Wanderley Guilherme dos Santos: Pode ser. Um oportunista
capaz de galvanizar direita e esquerda. Acho que não é jogo para Marina. Esse
negócio colocou todo mundo sub judice. É uma situação favorável ao aparecimento
de oportunistas competitivos. Se serão capazes de levar essa insatisfação a
algum lugar é outra questão mas não tenho dúvidas de que 2018 não será só PT e
PSDB.
A conjuntura é
comparável àquela que se sucedeu à operação 'Mãos Limpas' na Itália que deu
lugar a Silvio Berlusconi?
Wanderley Guilherme dos Santos: Não conheço nem gosto de
comparar. São as forças telúricas de nossa política que definem. Nosso problema
é complicado porque a liderança da oposição é fraca. Os conservadores atuais
são medíocres e agressivos no vocabulário. A esquerda também é, mas para quem
precisa competir e mostrar a diferença tem que ter mais. As pessoas podem ter
um papel causal que as instituições perderam. É o momento da virtude.
E o sr. distingue
lideranças virtuosas nesse processo?
Wanderley Guilherme dos Santos: Não, todos perdem capital
aceleradamente
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